Introdução
O
desenvolvimento do conhecimento reflete em suas características específicas, o
processo em que o homem vai progressivamente transformando a realidade natural
em uma realidade social, uma realidade humana, uma realidade humanizada. O
homem, ao transformar a natureza em função de suas necessidades, gera
conhecimento. Para apropriar-se da natureza e transformá-la em função de suas
necessidades, o homem inicialmente necessita conhecer o objeto natural a ser
transformado mediante a inserção do objeto na lógica da atividade humana.
Esclarecendo com um exemplo: quando o homem transforma um tronco de árvore em
um objeto para sentar, isto é, que sirva como um banco, ele precisa
inicialmente conhecer o objeto natural a ser transformado, no caso, o tronco de
árvore. “Conhecer” o tronco significa entender suas propriedades no sentido de
ser possível transformá-lo em objeto para sentar (características como firmeza,
consistência, umidade, etc.). “A lógica da atividade humana” ao concretizar
aquilo que é pensado, transforma o objeto natural (o pedaço de tronco) em um
objeto com funções sociais (o banco).
Na medida em que a atividade humana se processa respondendo às
necessidades humanas do dia-a-dia, novas necessidades vão sendo criadas e isto
leva à busca de novas respostas que se traduz pela necessidade de superar
certos limites que antes respondiam às necessidades anteriores. Isto
significará novas respostas a novas necessidades, determinando a produção do
conhecimento em escalas cada vez mais complexas. No exemplo apresentado acima,
os diversos modelos de banco hoje conhecidos não são os mesmos quando da sua
criação inicial. O conhecimento humano alcança tal nível de desenvolvimento que
progressivamente vai ocorrer um distanciamento cada vez maior entre o
conhecimento processado no cotidiano e o conhecimento mais elaborado que,
inclusive, exige um raciocínio cada vez mais complexo. Na matemática, a
produção de seus conceitos também se deu de forma progressiva, determinando uma
crescente diferenciação entre um conhecimento matemático próprio da esfera
cotidiana e um conhecimento em níveis de abstrações mais complexos que aqueles
atrelados à esfera cotidiana. Importante esclarecer dois aspectos: o primeiro
refere-se ao conceito de abstração. A idealização de uma ação é uma abstração.
No exemplo do tronco a idéia de um banco é uma abstração com a complexificação
da ação transformadora de realizar cada vez mais formas diversas de bancos. A
idealização dessa formas retrata a progressiva complexificação destas ações de
resultar em “bancos”.
Na
matemática toda e qualquer idealização de ordem quantitativa (número) ou
qualitativa (formas, espaço, tamanhos) denota abstrações. Quanto mais o objeto
ou ação produzida/ realizada pelo homem, ganha interpretações de ordem
qualitativa/ quantitativa, maior o nível de abstrações matemáticas envolvidas.
A noção de contagem numérica com uma criança de três anos é uma complexa
abstração restrita à sua ordinalidade, já a notação de contagem numérica de uma
criança de cinco anos é uma abstração mais complexa da realizada por uma
criança de três anos (pois utiliza as primeiras noções de cardinalidade). Em
ambas as situações se tratam de abstrações só que em níveis distintos de
complexidade. O segundo aspecto refere-se ao fato que a produção histórica não
denota um processo cronologicamente linear. Na verdade, é um processo não
linear que se dá por avanços e recuos em diferentes épocas históricas, com
diferentes dinâmicas, dadas as diferentes condições históricas e sociais
inerentes a cada sociedade. Portanto, não se trata de etapas sequencialmente
ordenadas. Ao longo do processo histórico-social de elaboração do conhecimento
matemático, suas primeiras noções caracterizaram- se por uma interpretação da
natureza condicionada aos limites do corpo humano. Nessa etapa, o corpo humano
é instrumento, um ponto de referência, um parâmetro para as primeiras noções
matemáticas de contagem e de medida.
Nesse
período, a relação homem-natureza ocorreu num nível muito elementar: os homens
desenvolviam suas vidas através de atividades como caça, pesca e elaboração dos
utensílios. Conforme será aqui apresentado, o corpo humano revelar-se-á uma
alternativa eficaz e possível para expressar a contagem. Essa alternativa será
utilizada até as suas máximas possibilidades, até o esgotamento máximo mediante
o desenvolvimento de verdadeiras “técnicas corporais”. O mesmo se dará para o
uso de medidas. Neste caso, o esgotamento do corpo humano como instrumento para
expressão do conhecimento determinará uma diversificação maior de unidades de
medidas. A complexidade crescente da relação homem-natureza mediante a execução
de toda sorte de atividades direciona a produção do conhecimento a buscar novas
formas de parâmetros que aqueles decorrentes da dimensão corporal. Como já foi
dito, novas necessidades determinam a produção de novos conhecimentos em níveis
cada vez mais complexos. A utilização do corpo humano para elaboração do
conhecimento viria a se tornar limitadora diante da necessidade de atingir
níveis mais complexos de contagem e de medida. Assim, a dimensão corporal
humana que durante uma época foi um avanço para a elaboração da matemática,
torna-se numa época posterior um entrave. O novo parâmetro será a observação
imediata dos fenômenos que constituem a realidade do dia-a-dia. Esse momento é
caracterizado como uma segunda etapa do processo de elaboração do conhecimento
matemático segundo a perspectiva histórico-social aqui utilizada. Trata-se de
uma etapa em que as noções matemáticas originam-se daquilo que era
imediatamente observado na realidade. Assim, a contagem neste estágio não mais
poderá utilizar a expressão corporal como estratégia. O homem necessitará criar
formas mais dinâmicas na elaboração do conhecimento que aquelas associadas à
representação corporal. Daí, o surgimento do ábaco, quer seja pelo simples
traçado de sulcos na areia com a utilização de pedrinhas para contagem, quer
seja pela elaboração de ábacos “portáteis” como os utilizados pelos romanos no
século I d.C. Percebe-se aqui que, embora a contagem naturalmente continue na
segunda etapa, esse conceito passa a não ser mais limitado ao corpo humano,
pois, vai sendo substituído pelo ábaco e passando para noções mais complexas. O
mesmo se dará com a noção de medidas, mediante a necessidade de padronização
das diversas unidades de medidas até então existentes. Neste
contexto, o que era imediatamente observado torna-se
o parâmetro eficaz para interpretação matemática da realidade. Daí, inclusive, a observação dos fenômenos da natureza pelos registros das estações (primavera, verão,
outono e inverno), a origem da geometria (por medição
como as efetuadas pelos egípcios no Rio Nilo)
e os primeiros conhecimentos de astronomia
pelas navegações (constelações, etc). Ocorre
que, da mesma forma que a dimensão corporal revelou-se
numa certa época avanço e, posteriormente, numa época
posterior, entrave para a elaboração do conhecimento, o mesmo viria a ocorrer nessa segunda etapa. A atividade
humana se torna ainda mais complexa, o que
significará novas respostas necessárias à
superação de novas necessidades atingindo um
grau de exigência em que a mera observação imediata
da realidade se revelaria também insuficiente como parâmetro gerador de novos conhecimentos mais complexos.
Paulatinamente se desenvolvem conhecimentos num nível
em que não é mais possível a associação imediata com
as necessidades da realidade social. A
matemática alcança um tal nível de
desenvolvimento, que ocorre um distanciamento cada
vez maior entre o conhecimento processado no cotidiano e o conhecimento elaborado que vai exigindo um determinado
método de pensamento que por sua vez, utiliza cada
vez mais as abstrações em níveis mais
complexos. Essa terceira etapa significará a
determinação de uma nova esfera da produção de
conhecimentos para além daqueles oriundos das
necessidades mais imediatas atrelada ao
cotidiano.
As
abstrações matemáticas não mais retratam uma relação direta com a realidade
imediata. Se antes, eram associadas ao cotidiano imediato passam a serem
elaboradas no âmbito da relação de abstrações a partir de abstrações.
Estabelece-se a “logificação” da matemática (PRADO JÚNIOR,1952). Essa
“logificação” imprime o necessário desenvolvimento e domínio de uma linguagem
simbólica, linguagem que permite atingir os níveis cada vez mais complexos do
raciocínio matemático. A universalidade dessa linguagem é o que permite a
possibilidade de socialização dos domínios atingidos pelo conhecimento
matemático a todo indivíduo independente de seu contexto social de vida. À
escola, cumpre realizar a apropriação da matemática historicamente acumulada. E
na realização dessa apropriação através de procedimentos pedagógicos
intencionalmente dirigidos, verifica-se a possibilidade de conceber um relativo
paralelo entre esse processo histórico-social de desenvolvimento da matemática
e sua progressiva complexidade retratada nos anos escolares desde a Educação
Infantil, passando pelo Ensino Fundamental e, chegando finalmente, até o final
do Ensino Médio. Em outras palavras, é possível conceber situações concretas de
ensino-aprendizagem da matemática, em que ocorra a caracterização do processo
segundo a qual um determinado tópico ou conceito matemático de relativo avanço
para a produção da Matemática torna-se numa época histórica posterior, um
entrave a esse próprio processo de desenvolvimento fazendo sentir à necessidade
de novas abstrações. No âmbito da Educação Infantil, tal fato ocorre nos
conceitos de contagem e medida. Para entender essa possibilidade, é preciso
tecer ainda mais algumas considerações históricas específicas sobre esses
conceitos para ser possível entender sua manifestação em procedimentos de
ensino.
Por
José Roberto Boettger Giardinetto
Janeti Marmontel Mariani
MATEMÁTICA E EDUCAÇÃO INFANTIL - Cadernos
CECEMCA, n.8 v.1 Bauru - Faculdade de Ciências 2005