domingo, 16 de setembro de 2012

O Processo Histórico-Social de Desenvolvimento do Conhecimento Matemático

Introdução

O desenvolvimento do conhecimento reflete em suas características específicas, o processo em que o homem vai progressivamente transformando a realidade natural em uma realidade social, uma realidade humana, uma realidade humanizada. O homem, ao transformar a natureza em função de suas necessidades, gera conhecimento. Para apropriar-se da natureza e transformá-la em função de suas necessidades, o homem inicialmente necessita conhecer o objeto natural a ser transformado mediante a inserção do objeto na lógica da atividade humana. Esclarecendo com um exemplo: quando o homem transforma um tronco de árvore em um objeto para sentar, isto é, que sirva como um banco, ele precisa inicialmente conhecer o objeto natural a ser transformado, no caso, o tronco de árvore. “Conhecer” o tronco significa entender suas propriedades no sentido de ser possível transformá-lo em objeto para sentar (características como firmeza, consistência, umidade, etc.). “A lógica da atividade humana” ao concretizar aquilo que é pensado, transforma o objeto natural (o pedaço de tronco) em um objeto com funções sociais (o banco).
Na medida em que a atividade humana se processa respondendo às necessidades humanas do dia-a-dia, novas necessidades vão sendo criadas e isto leva à busca de novas respostas que se traduz pela necessidade de superar certos limites que antes respondiam às necessidades anteriores. Isto significará novas respostas a novas necessidades, determinando a produção do conhecimento em escalas cada vez mais complexas. No exemplo apresentado acima, os diversos modelos de banco hoje conhecidos não são os mesmos quando da sua criação inicial. O conhecimento humano alcança tal nível de desenvolvimento que progressivamente vai ocorrer um distanciamento cada vez maior entre o conhecimento processado no cotidiano e o conhecimento mais elaborado que, inclusive, exige um raciocínio cada vez mais complexo. Na matemática, a produção de seus conceitos também se deu de forma progressiva, determinando uma crescente diferenciação entre um conhecimento matemático próprio da esfera cotidiana e um conhecimento em níveis de abstrações mais complexos que aqueles atrelados à esfera cotidiana. Importante esclarecer dois aspectos: o primeiro refere-se ao conceito de abstração. A idealização de uma ação é uma abstração. No exemplo do tronco a idéia de um banco é uma abstração com a complexificação da ação transformadora de realizar cada vez mais formas diversas de bancos. A idealização dessa formas retrata a progressiva complexificação destas ações de resultar em “bancos”.
Na matemática toda e qualquer idealização de ordem quantitativa (número) ou qualitativa (formas, espaço, tamanhos) denota abstrações. Quanto mais o objeto ou ação produzida/ realizada pelo homem, ganha interpretações de ordem qualitativa/ quantitativa, maior o nível de abstrações matemáticas envolvidas. A noção de contagem numérica com uma criança de três anos é uma complexa abstração restrita à sua ordinalidade, já a notação de contagem numérica de uma criança de cinco anos é uma abstração mais complexa da realizada por uma criança de três anos (pois utiliza as primeiras noções de cardinalidade). Em ambas as situações se tratam de abstrações só que em níveis distintos de complexidade. O segundo aspecto refere-se ao fato que a produção histórica não denota um processo cronologicamente linear. Na verdade, é um processo não linear que se dá por avanços e recuos em diferentes épocas históricas, com diferentes dinâmicas, dadas as diferentes condições históricas e sociais inerentes a cada sociedade. Portanto, não se trata de etapas sequencialmente ordenadas. Ao longo do processo histórico-social de elaboração do conhecimento matemático, suas primeiras noções caracterizaram- se por uma interpretação da natureza condicionada aos limites do corpo humano. Nessa etapa, o corpo humano é instrumento, um ponto de referência, um parâmetro para as primeiras noções matemáticas de contagem e de medida.
Nesse período, a relação homem-natureza ocorreu num nível muito elementar: os homens desenvolviam suas vidas através de atividades como caça, pesca e elaboração dos utensílios. Conforme será aqui apresentado, o corpo humano revelar-se-á uma alternativa eficaz e possível para expressar a contagem. Essa alternativa será utilizada até as suas máximas possibilidades, até o esgotamento máximo mediante o desenvolvimento de verdadeiras “técnicas corporais”. O mesmo se dará para o uso de medidas. Neste caso, o esgotamento do corpo humano como instrumento para expressão do conhecimento determinará uma diversificação maior de unidades de medidas. A complexidade crescente da relação homem-natureza mediante a execução de toda sorte de atividades direciona a produção do conhecimento a buscar novas formas de parâmetros que aqueles decorrentes da dimensão corporal. Como já foi dito, novas necessidades determinam a produção de novos conhecimentos em níveis cada vez mais complexos. A utilização do corpo humano para elaboração do conhecimento viria a se tornar limitadora diante da necessidade de atingir níveis mais complexos de contagem e de medida. Assim, a dimensão corporal humana que durante uma época foi um avanço para a elaboração da matemática, torna-se numa época posterior um entrave. O novo parâmetro será a observação imediata dos fenômenos que constituem a realidade do dia-a-dia. Esse momento é caracterizado como uma segunda etapa do processo de elaboração do conhecimento matemático segundo a perspectiva histórico-social aqui utilizada. Trata-se de uma etapa em que as noções matemáticas originam-se daquilo que era imediatamente observado na realidade. Assim, a contagem neste estágio não mais poderá utilizar a expressão corporal como estratégia. O homem necessitará criar formas mais dinâmicas na elaboração do conhecimento que aquelas associadas à representação corporal. Daí, o surgimento do ábaco, quer seja pelo simples traçado de sulcos na areia com a utilização de pedrinhas para contagem, quer seja pela elaboração de ábacos “portáteis” como os utilizados pelos romanos no século I d.C. Percebe-se aqui que, embora a contagem naturalmente continue na segunda etapa, esse conceito passa a não ser mais limitado ao corpo humano, pois, vai sendo substituído pelo ábaco e passando para noções mais complexas. O mesmo se dará com a noção de medidas, mediante a necessidade de padronização das diversas unidades de medidas até então existentes. Neste contexto, o que era imediatamente observado torna-se o parâmetro eficaz para interpretação matemática da realidade. Daí, inclusive, a observação dos fenômenos da natureza pelos registros das estações (primavera, verão, outono e inverno), a origem da geometria (por medição como as efetuadas pelos egípcios no Rio Nilo) e os primeiros conhecimentos de astronomia pelas navegações (constelações, etc). Ocorre que, da mesma forma que a dimensão corporal revelou-se numa certa época avanço e, posteriormente, numa época posterior, entrave para a elaboração do conhecimento, o mesmo viria a ocorrer nessa segunda etapa. A atividade humana se torna ainda mais complexa, o que significará novas respostas necessárias à superação de novas necessidades atingindo um grau de exigência em que a mera observação imediata da realidade se revelaria também insuficiente como parâmetro gerador de novos conhecimentos mais complexos. Paulatinamente se desenvolvem conhecimentos num nível em que não é mais possível a associação imediata com as necessidades da realidade social. A matemática alcança um tal nível de desenvolvimento, que ocorre um distanciamento cada vez maior entre o conhecimento processado no cotidiano e o conhecimento elaborado que vai exigindo um determinado método de pensamento que por sua vez, utiliza cada vez mais as abstrações em níveis mais complexos. Essa terceira etapa significará a determinação de uma nova esfera da produção de conhecimentos para além daqueles oriundos das necessidades mais imediatas atrelada ao cotidiano.
As abstrações matemáticas não mais retratam uma relação direta com a realidade imediata. Se antes, eram associadas ao cotidiano imediato passam a serem elaboradas no âmbito da relação de abstrações a partir de abstrações. Estabelece-se a “logificação” da matemática (PRADO JÚNIOR,1952). Essa “logificação” imprime o necessário desenvolvimento e domínio de uma linguagem simbólica, linguagem que permite atingir os níveis cada vez mais complexos do raciocínio matemático. A universalidade dessa linguagem é o que permite a possibilidade de socialização dos domínios atingidos pelo conhecimento matemático a todo indivíduo independente de seu contexto social de vida. À escola, cumpre realizar a apropriação da matemática historicamente acumulada. E na realização dessa apropriação através de procedimentos pedagógicos intencionalmente dirigidos, verifica-se a possibilidade de conceber um relativo paralelo entre esse processo histórico-social de desenvolvimento da matemática e sua progressiva complexidade retratada nos anos escolares desde a Educação Infantil, passando pelo Ensino Fundamental e, chegando finalmente, até o final do Ensino Médio. Em outras palavras, é possível conceber situações concretas de ensino-aprendizagem da matemática, em que ocorra a caracterização do processo segundo a qual um determinado tópico ou conceito matemático de relativo avanço para a produção da Matemática torna-se numa época histórica posterior, um entrave a esse próprio processo de desenvolvimento fazendo sentir à necessidade de novas abstrações. No âmbito da Educação Infantil, tal fato ocorre nos conceitos de contagem e medida. Para entender essa possibilidade, é preciso tecer ainda mais algumas considerações históricas específicas sobre esses conceitos para ser possível entender sua manifestação em procedimentos de ensino.

Por
José Roberto Boettger Giardinetto
Janeti Marmontel Mariani
 
MATEMÁTICA E EDUCAÇÃO INFANTIL - Cadernos CECEMCA, n.8 v.1 Bauru - Faculdade de Ciências 2005
 

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